segunda-feira, 23 de maio de 2011

Agustina Bessa-Luís


OS MUNDOS FECHADOS DE AGUSTINA


Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã, Amarante (região do Douro), em 1922. A sua infância e adolescência foram passadas nesta região, cuja ambiência marcará fortemente a obra da escritora. Estreou-se como romancista em 1948 com a novela Mundo Fechado, cujo título actua como que uma espécie de definição de toda a sua produção literária e do próprio mundo de Agustina – na verdade, a ambiência das suas obras vive de «mundos fechados», bem como a sua própria escrita se encontra «fechada» a qualquer tentativa de contextualização, em termos de correntes, na história da literatura portuguesa. Manteve, desde então, um ritmo de publicação pouco usual nas letras portuguesas, contando até ao momento com mais de meia centena de obras. Tem representado as letras portuguesas em numerosos colóquios e encontros internacionais e realizado conferências em universidades um pouco por todo o mundo...
Centro de Documentação de Autores Portugueses
05/2004

Continuação da biografia de Agustina no sítio da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas.





PARA VILA-MEà

Felizes os que chegam a uma idade longa com as recordações dos primeiros anos. Porque nada melhor que a companhia dessas memórias douradas para nos fazer acreditar na imortalidade. Somos imortais pelo que recordamos e não pelo que vivemos.
Esta terra onde nasci é o melhor caminho para as minhas recordações. Daqui se parte para o lugar do Barral onde teve casa a minha família materna com cinco filhas, sendo uma delas Justina, minha avó de que bastante falei nos meus  livros. Do lugar do Barral à casa do Paço era mau caminho, entre campos de milho e ribanceiras, onde, no verão, havia cachos de amoras. O lugar do Paço foi uma escola mais importante do que a das letras. A gente que lá vivia despertou em mim a expectativa pelo extraordinário. Eu ouvia as histórias como se fossem retratos do mundo ainda por descobrir e, naquele trono que era o preguiceiro, minhas tias falavam dos sete pecados mortais como se fossem gente viva e pronta a bater à porta. Não falavam com horror nem consentimento. Eu aprendi assim que não há senão fraquezas e pactos melancólicos com a tentação. Para ver que há beleza no mundo bastava descer até ao tanque, quem vai para a eira, e reparar que nasciam as primeiras túlipas. Bastava ver as ovelhas com os balidos mansos, ao entardecer, ou ver o leite acabado de mungir, tão branco e espumoso como uma bebida espirituosa. Tudo isso me fez escritora, tudo me caiu no coração como um sino de prata que não pára de tinir como se o  vento o bulisse.
Vila-Meã em dia de feira, com os ourives, os vendedores de leitões que de tão cor-de-rosa pareciam pintados, era para mim uma peregrinação, com minha tia adiante segurando o guarda-sol preto e com aquele sorriso que lhe descobria um dente desacertado. Ela gostava de falar, falava sem parar ao sol de Agosto como se estivesse no parque mais fresco, no bosque de Viena pelo menos. Agora estou a parecer-me com ela, sou capaz de tomar o rumo duma conversa e não o largar, horas a fio. É extraordinário como temos em nós tantas heranças e vamos gastando umas e outras fazendo com que os nossos parentes passem por nós, acenando ao passar.
Nasci, como sabem, numa casa aqui perto. Nasci num domingo, o que é bom presságio. Nos países nórdicos, quem nasce ao dominho será capaz de prever o futuro. Não me agradaria ter esse dom, porque adivinhar não é saber; sobretudo perde-se a fantasia da curiosidade e da teia romanesca que é matéria do escritor.
A Sibila, essa sim, gostava de ser adivinha. Brincava a prever as coisas, raramente se enganava. Tinha orgulho nessa esperteza que alguns povos desenvolvem com a atenção de observar tudo o que os rodeia. Observam como quem colhe plantas para fazer medicina caseira; a tudo dão importância e tudo em mantido em sigilo que é a chave da persuasão.
Eu sinto grande vaidade na honra que me fazem hoje. Vaidade porque de algum modo a merecia; mas não tanto que me esqueça de devolver à minha terra o que a minha terra me deu - a realidade de que se alimenta a imaginação. Agradeço esta bonita festa e a todos que nela participaram. Que ela nos deixe a todos uma lembrança amável que se perpetuará na história fizermos, mais dia, menos dia. Muito obrigada.

Porto, 30 de Dezembro de 2002       

Agustina Bessa-Luís, in "O chapéu das fitas a voar"







Sem comentários:

Enviar um comentário