segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Mês Internacional das Bibliotecas Escolares


Integrada nas atividades do Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, este ano subordinado ao tema “Ligar comunidades e culturas”, decorreu, nos dias 16 e 17 de outubro, a Estafeta de Leitura da ESMT.




Para as turmas do Ensino Secundário foi selecionado o prefácio da 2.ª edição dos "Contos da Montanha", de Miguel Torga.


S. Martinho de Anta, Setembro de 1945.

Querido leitor:

Escrevo-te da Montanha, do sítio onde medram as raízes deste livro. Vim ver a sepultura do Alma Grande e percorrer a via sacra da Mariana. Encontrei tudo como deixei o ano passado, quando da primeira edição destas aventuras.. Apenas vi mais fome, mais ignorância e mais desespero. Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos.

O social juntou-se ao natural, e a lei anda de mãos dadas com o suão a acabar de secar os olhos e as fontes. Crestados e encarquilhados, os rostos dos velhos parecem pergaminhos milenários onde uma pena cruel traçou fundas e trágicas legendas. Na cara lisa dos novos pouca mais esperança há. Ora eu sou escritos, como sabes. Poeta, prosador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário. E foi por isso que fiz aqui uma promessa que te transmito: 

Que estava certo de que tu, habitante dos nateiros da planície, terias em breve compreensão e amor pela sorte áspera destes teus irmãos. Que um dia virias ao encontro da aridez e da tristeza contidas nas suas fragas, não como leitor do pitoresco ou do estranho, mas como sensível criatura tocada pela magia da arte e chamada pelos imperativos da vida. 

Prometi isso porque me senti humilhado com tanto surro e com tanta lazeira, e envergonhado de representar o ingrato papel de cronista de um mundo que nem me pode ler. Tomei o compromisso em teu nome, o que quer dizer em nome da própria consciência colectiva. Na tua ideia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar, e se possível comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos.

Teu

Miguel Torga



À descoberta do patrono da nossa escola, os alunos do Ensino Básico escutaram um texto autobiográfico, seguido do poema "Brasil". 


(O PAI À PROCURA DA PROFISSÃO)
Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguissse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.
 Meu pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada... Gostava, gostava, de me ver professor, ou médico, ou advogado. Mas nicles, faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse ser. Se arranjasse a meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...
O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados à terra, a embrutecer, ou eram arrebanhados pela Santa Madre Igreja. Não! Tudo menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.
- É o que terá de mais certo... concluiu meu Pai, resignado. A cavar é que não fica. Bem bastou eu.
Não era a primeira vez que fazia tal afirmação. Mas nunca pusera nela tanta firmeza. Como que lhe veio à boca, naquele momento, toda a amargura de uma longa e atribulada crónica familiar, de que fora comparsa, que não queria ver prolongada em mim. Crónica que, de tão impressiva, se me gravara na memória através dos anos, um episódio ouvido hoje, outro amanhã.
Meu avô paterno, carreiro; meu avô materno, almocreve. Ambos honrados e trabalhadores, e ambos pobres toda a vida.
(...)
 E compreendia que ali apenas me esperava um destino igual. Mas o Brasil ficava longe, e o seminário era ser padre...
- Pois tens de escolher!... - insistiu meu Pai, inflexível. - Aqui não te quero. Por isso, resolve. 
Minha mãe ouvia-o, calada. Olhava-me com os seus olhos quase verdes, fundos, enxugava uma lágrima teimosa, e continuava a segar o caldo. Depois, a meu pedido, cantava. Perguntava-me o que havia de ser, e eu, sem hesitar, escolhia no seu longo reportório o diálogo dos dois namorados junto ao ribeiro.
                       Eu admiro
                       como no rio
                       lavas, Engrácia,
                       dias a fio!
                      Com os pèzinhos...




Brasil

Brasil
onde vivi,
Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino:
Há quanto tempo já que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino!

Que milhas de angústia no mar da saudade!
Que salgado pranto no convés da ausência!
Chegar.
Perder-te mais.
Outra orfandade,
Agora sem o amparo da inocência.

Dois pólos de atracção no pensamento!
Duas ânsias opostas nos sentidos!
Um purgatório em que o sofrimento
Nunca avista um dos céus apetecidos.

Ah, desterro do rosto em cada face,
Tristeza dum regaço repartido!
Antes o desespero naufragasse
Ente o chão encontrado e o chão perdido.



Parabéns aos estafetas de leitura!



sábado, 14 de outubro de 2017

150 anos da abolição da pena de morte em Portugal


No dia 10 de Outubro,  a Amnistia Internacional promoveu a iniciativa “Pena de Morte: Justiça ou Crueldade” dirigida a jovens do ensino secundário, no Auditório do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. 

Silvestre Lacerda, diretor-geral
da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas


A ESMT participou nesta atividade, integrada no programa de comemorações dos 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal, que pretendeu simular uma Assembleia Geral das Nações Unidas para discutir uma moção com o objetivo de abolir a pena de morte em todo o mundo. 
Os jovens da nossa escola prepararam a sua intervenção, refletindo sobre os argumentos que a Arábia Saudita, país que deviam representar, utilizaria para defender a sua posição retencionista*.


Aluno da ESMT discursa representando
o papel do rei  Salman bin Abdul Aziz Al-Saud na ONU


Foi ainda projetado um pequeno vídeo sobre a Carta de Lei de abolição da pena de morte em Portugal (1867), onde é decretada, pelo rei D. Luís I, a reforma do sistema judicial português. 




No início da tarde,os nossos alunos tiveram a oportunidade de realizar uma pequena visita guiada às instalações da Torre do Tombo e a uma exposição sobre a pena de morte e a sua abolição em Portugal e no mundo.




Descobriram a distinção de Marca do Património Europeu atribuída à Carta de Lei de Abolição da Pena de Morte em Portugal, documento guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo.  



Leram a carta de Victor Hugo, notório abolicionista, dirigida ao jornalista Brito Aranha, que o mantinha informado sobre as movimentações contra a pena de morte:

“A Brito Aranha. – Fez-me pulsar o coração a sua carta.
Já sabia a grande nova, e foi-me grato receber-lhe o eco simpático por seu intermédio.
Não! Não há povos pequenos.
O que há é homens pequenos!
E, algumas vezes, são estes os que governam os grandes povos.
Os povos que têm déspotas parecem leões açaimados.
Amo e glorifico o seu belo e querido Portugal. É livre e, portanto, é grande.
Portugal acaba de abolir a pena de morte.
Atingir este progresso é dar o grande passo da civilização.
Desde hoje, Portugal está à frente da Europa.
Vós, os portugueses, não haveis cessado dê ser navegadores intrépidos. Ides sempre para a frente, outrora no Oceano, hoje na Verdade.
Proclamar princípios é ainda mais belo do que descobrir mundos.
Exclamo: Glória a Portugal; e a si: Felicidade.
Aperto a sua mão cordial. – Vítor Hugo”.


Assistiram, por fim, ao vídeo onde Robert Badinter, o ex-ministro francês da Justiça que conseguiu a abolição da pena de morte no seu país a 30 de setembro de 1981, era François Mitterrand presidente, elogia o contributo civilizacional de Portugal como país abolicionista.





No ano em que o Plano Anual de Atividades do nosso Agrupamento de Escolas tem por tema "Conhecer e seguir Miguel Torga", não podíamos deixar de referir a sua intervenção no Colóquio internacional comemorativo do centenário da abolição da pena de morte, realizado em Coimbra, em 1967.  Por essa ocasião, Miguel Torga leu uma conferência, que posteriormente  integrou no volume X do Diário, e da qual aqui apresentamos os seguintes excertos:

“Convidado a participar neste colóquio comemorativo da abolição da pena de morte em Portugal, é na dupla condição de poeta e de médico que estou aqui. O poeta representará, como puder, o ardor indignado e fraterno de quantos, de Villon a Victor Hugo, de Gil Vicente a Guerra Junqueiro, protestaram contra o iníquo pesadelo, e contribuíram para a sua extinção ou repulsa na consciência universal; o médico simbolizará, com igual modéstia, a interminável falange daqueles que foram sempre, e são ainda, em todas as sociedades, os inimigos jurados e activos de qualquer forma de aniquilamento humano”.
...
"A tragédia do homem, cadáver adiado, como lhe chamou Fernando Pessoa, não necessita dum remate extemporâneo no palco. É tensa bastante para dispensar um fim artificial, gizado por magarefes, megalómanos, potentados, racismos e ortodoxias. Por isso, humanos que somos, exijamos de forma inequívoca que seja dado a todos os povos um código de humanidade. Um código que garanta a cada cidadão o direito de morrer a sua própria morte".


A mensagem do patrono do nosso Agrupamento permanece, infelizmente, bem atual. Com efeito, não só um terço dos países do mundo continua retencionista, mas, como se pôde verificar pelo debate acalorado na Torre do Tombo, esta é uma questão muita mais polémica do que se poderia crer, num país que há 150 anos proclamou a proibição de matar até mesmo quem matou, como recordou Miguel Torga na sua conferência sobre a pena de morte.













Recordamos, aqui, a informação facultada pela Amnistia Internacional, sobre o posicionamento dos estados no que respeita à pena de morte.

Abolicionistas para todos os crimes: países cujas leis não preveem a pena de morte para nenhum crime (Portugal foi o primeiro país a abolir a pena de morte para crimes comuns, em 1867

Abolicionistas para crimes comuns: países cujas leis preveem a pena de morte para crimes excecionais, como crimes ao abrigo da lei militar e durante a guerra (como é o caso do Brasil e Chile, por exemplo);

Abolicionistas na prática: países que retêm a pena de morte para crimes comuns mas que não executaram ninguém nos últimos 10 anos e que se acredita que tenham uma política ou prática estabelecida de não levarem a cabo execuções (dos quais são exemplo a Rússia e a Argélia);

Retencionistas: países que retêm a pena de morte para crimes comuns como assassinatos, em tempos de paz ou que não cumprem os critérios para a categoria “abolicionistas na prática” (caso da China, Arábia Saudita e EUA).