Integrada nas atividades do Mês Internacional das Bibliotecas Escolares, este ano subordinado ao tema “Ligar comunidades e culturas”, decorreu, nos dias 16 e 17 de outubro, a Estafeta de Leitura da ESMT.
Para as turmas do Ensino Secundário foi selecionado o prefácio da 2.ª edição dos "Contos da Montanha", de Miguel Torga.
Querido leitor:
Escrevo-te da Montanha, do sítio onde medram as raízes deste livro. Vim ver a sepultura do Alma Grande e percorrer a via sacra da Mariana. Encontrei tudo como deixei o ano passado, quando da primeira edição destas aventuras.. Apenas vi mais fome, mais ignorância e mais desespero. Corre por estes montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos.
O social juntou-se ao natural, e a lei anda de mãos dadas com o suão a acabar de secar os olhos e as fontes. Crestados e encarquilhados, os rostos dos velhos parecem pergaminhos milenários onde uma pena cruel traçou fundas e trágicas legendas. Na cara lisa dos novos pouca mais esperança há. Ora eu sou escritos, como sabes. Poeta, prosador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário. E foi por isso que fiz aqui uma promessa que te transmito:
Que estava certo de que tu, habitante dos nateiros da planície, terias em breve compreensão e amor pela sorte áspera destes teus irmãos. Que um dia virias ao encontro da aridez e da tristeza contidas nas suas fragas, não como leitor do pitoresco ou do estranho, mas como sensível criatura tocada pela magia da arte e chamada pelos imperativos da vida.
Prometi isso porque me senti humilhado com tanto surro e com tanta lazeira, e envergonhado de representar o ingrato papel de cronista de um mundo que nem me pode ler. Tomei o compromisso em teu nome, o que quer dizer em nome da própria consciência colectiva. Na tua ideia, o que escrevo, como por exemplo estas histórias, é para te regalar, e se possível comover. Mas quero que saibas que ousei partir desse regalo e dessa comoção para te responsabilizar na salvação da casa que, por arder, te deslumbra os sentidos.
Teu
Miguel Torga
À descoberta do patrono da nossa escola, os alunos do Ensino Básico escutaram um texto autobiográfico, seguido do poema "Brasil".
(O PAI À PROCURA DA PROFISSÃO)
Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguissse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.
Meu pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada... Gostava, gostava, de me ver professor, ou médico, ou advogado. Mas nicles, faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse ser. Se arranjasse a meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...
O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados à terra, a embrutecer, ou eram arrebanhados pela Santa Madre Igreja. Não! Tudo menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.
- É o que terá de mais certo... concluiu meu Pai, resignado. A cavar é que não fica. Bem bastou eu.
Não era a primeira vez que fazia tal afirmação. Mas nunca pusera nela tanta firmeza. Como que lhe veio à boca, naquele momento, toda a amargura de uma longa e atribulada crónica familiar, de que fora comparsa, que não queria ver prolongada em mim. Crónica que, de tão impressiva, se me gravara na memória através dos anos, um episódio ouvido hoje, outro amanhã.
Meu avô paterno, carreiro; meu avô materno, almocreve. Ambos honrados e trabalhadores, e ambos pobres toda a vida.
(...)
E compreendia que ali apenas me esperava um destino igual. Mas o Brasil ficava longe, e o seminário era ser padre...
- Pois tens de escolher!... - insistiu meu Pai, inflexível. - Aqui não te quero. Por isso, resolve.
Minha mãe ouvia-o, calada. Olhava-me com os seus olhos quase verdes, fundos, enxugava uma lágrima teimosa, e continuava a segar o caldo. Depois, a meu pedido, cantava. Perguntava-me o que havia de ser, e eu, sem hesitar, escolhia no seu longo reportório o diálogo dos dois namorados junto ao ribeiro.
Eu admiro
como no rio
lavas, Engrácia,
dias a fio!
Com os pèzinhos...
Brasil
Brasil
onde vivi,
Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino:
Há quanto tempo já que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino!
Que milhas de angústia no mar da saudade!
Que salgado pranto no convés da ausência!
Chegar.
Perder-te mais.
Outra orfandade,
Agora sem o amparo da inocência.
Dois pólos de atracção no pensamento!
Duas ânsias opostas nos sentidos!
Um purgatório em que o sofrimento
Nunca avista um dos céus apetecidos.
Ah, desterro do rosto em cada face,
Tristeza dum regaço repartido!
Antes o desespero naufragasse
Ente o chão encontrado e o chão perdido.
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