quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Miguel Torga


    Descobre a biografia de Miguel Torga no sítio da Biblioteca Nacional 
             

(O PAI À PROCURA DA PROFISSÃO)
Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguissse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.
 Meu pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada... Gostava, gostava, de me ver professor, ou médico, ou advogado. Mas nicles, faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse ser. Se arranjasse a meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...
O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados à terra, a embrutecer, ou eram arrebanhados pela Santa Madre Igreja. Não! Tudo menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil. 
- É o que terá de mais certo... concluiu meu Pai, resignado. A cavar é que não fica. Bem bastou eu.
Não era a primeira vez que fazia tal afirmação. Mas nunca pusera nela tanta firmeza. Como que lhe veio à boca, naquele momento, toda a amargura de uma longa e atribulada crónica familiar, de que fora comparsa, que não queria ver prolongada em mim. Crónica que, de tão impressiva, se me gravara na memória através dos anos, um episódio ouvido hoje, outro amanhã. 
Meu avô paterno, carreiro; meu avô materno, almocreve. Ambos honrados e trabalhadores, e ambos pobres toda a vida.
(...)
 E compreendia que ali apenas me esperava um destino igual. Mas o Brasil ficava longe, e o seminário era ser padre...
- Pois tens de escolher!... - insistiu meu Pai, inflexível. - Aqui não te quero. Por isso, resolve.   
Minha mãe ouvia-o, calada. Olhava-me com os seus olhos quase verdes, fundos, enxugava uma lágrima teimosa, e continuava a segar o caldo. Depois, a meu pedido, cantava. Perguntava-me o que havia de ser, e eu, sem hesitar, escolhia no seu longo reportório o diálogo dos dois namorados junto ao ribeiro. 
                       Eu admiro
                       como no rio
                       lavas, Engrácia,
                       dias a fio!
                      Com os pèzinhos...

                                                    
                                                                                        
                                                         Texto auto-biográfico do poeta

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