quinta-feira, 23 de abril de 2015

Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor

No âmbito da comemoração do Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, as escolas do concelho de Sintra param para ler, hoje, 23 de abril, das 9h30 às 9h45 e das 14h45 às 15h00.

A ESMT convida a comunidade escolar a aderir a esta iniciativa, aproveitando a oportunidade para comemorar a Revolução de Abril, com a leitura de alguns poetas que cantaram a liberdade e a resistência.

Seguem-se alguns dos textos que serão lidos durante o dia.



Ariane

Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco, frio,
A este rio Tejo de Lisboa.

Carregado de Sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades...
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades...

Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre as gaivotas que se dão no rio.

Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro.


Miguel  Torga (escrito na cadeia do Aljube)



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"Estou farta de batatas até aos olhos não posso ver batatas à minha frente porque tenho um azar danado enquanto toda a gente hoje tem o DIA mundial da poupança eu nasci numa casa em que andamos há cinco anos ou mais sim ou mais que eu tenho a impressão de que nunca vivemos senão assim mas o melhor é voltar ao que eu estava a contar enquanto toda a gente tem o dia mundial da poupança nós lá em casa andamos no ANO inteiro da poupança e o pior é que já vamos para o quarto ano da poupança e para quê? para chegarmos vivos ao fim do mês vivos mas cheios de batatas até aos olhos (...) deviam dar uma medalha ao meu Pai porque ele é um homem bestial que inventou a tal poupança antes do resto do mundo cá para mim deviam pôr o retrato dele nos livros de história ao lado dos retratos dos navegadores porque ele descobriu a poupança antes dos outros sim porque a verdade é que a gente lá em casa anda a navegar em poupança antes dos outros há tantos anos que nem conhecemos outra coisa eu cá por mim estou à espera para ver se compro um livro de matemática porque com o dinheiro que o meu Pai ganha nem para o ano mas para voltarmos outra vez ao que eu estava a dizer o que eu quero é que ponham debaixo dos cartazes (do Dia Mundial da Poupança) «Viva o Pai da Guidinha que inventou o Ano da Poupança Doméstica» ou qualquer outra coisa parecida para se fazer justiça” in Redacções da Guidinha 


Luís de Sttau Monteiro
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Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
Não É A Vida, Nem É A Morte

Natália Correia

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Os paraísos artificiais

Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.

Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.

O cântico das aves – não há cânticos,
mas só canários de 3º andar e papagaios de 5º.
E a música do vento é frio nos pardieiros.

Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.

A minha terra não é inefável.
A vida da minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito. 

Jorge de Sena



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LIX      
        
Todas as noites toca um telefone na Lua.

Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:


Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
bandeiras de pele humana, olhos furados de cardos,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
‑ e as mães a baterem nos filhos
para lhes ensinarem a instrução primária das lágrimas.


Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
mordaças com restos de bocas de cadáveres,
fúria de túmulos, guerra, raptos, incestos, automóveis imbecis,
saques, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
‑ e os dedos de súbito de ferro-em-brasa nos seios das mulheres,
lodo de sol aparente
que continuam a ser deusas nos jantares de cerimónia
com os colos luzidios das horas empertigadas.


Aqui planeta zero, zero, zero, nada, torres de musgo,
punhais a rasgarem noites em vez de chagas,
países de arame farpado, vulcões de sangue,
batalhas trespassadas do frio dos esqueletos concretos
‑ e ainda por cima a carne das mulheres só é real um momento,
um momento apenas
e em vão tentamos fixá-la com um sopro de frio
no rasto deste defunto com um caixão às costas
cheio de corações vivos.S.O.S.! S.O.S.!


Fantasmas de todos os planetas! Fantasmas de todos os planetas!
Saltai em pára-quedas no silêncio que há por dentro do silêncio
e vinde salvar-nos!


Vinde salvar os homens
para aqui abandonados ao pesadelo de si mesmos,
só a serem homens,
homens apenas,
homens sempre,
de manhã até à noite,
semi-homens,
infra-homens,
super-homens,
ex-homens...


E fartos, fartos, fartos, fartos, fartos, fartos
desta desistência
de já nem quererem ser deuses!


Nem de transformarem os cavalos em relâmpagos!           
   

José Gomes Ferreira



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